O relógio
marcava 42 minutos do segundo tempo. No placar, 0 a 0, resultado que
dava o título do Carioca de 1978 ao rival Vasco… Até que chegou
Rondinelli. Zico cobrou escanteio para o Flamengo e viu o zagueiro
correr em direção à área, subir mais alto que Abel e cabecear a bola
para o fundo das redes do goleiro Leão. “Daqui a cinquenta anos, dirão os que viveram o grande dia: ‘Nunca o Flamengo foi tão Flamengo!’”, disse Nelson Rodrigues sobre a vitória simples, que garantiu ao Rubro-Negro seu 18º título estadual.
A famosa conquista do Campeonato Carioca completa exatos 40 anos neste 3 de dezembro de 2018. Ao LANCE!,
Rondinelli, o “Deus da Raça”, relembrou sua carreira como zagueiro e o
triunfo estadual - considerado por muitos como o marco zero da “Geração
Zico”, a mais vitoriosa da história do Flamengo. Entre os anos de 1978 e
1983, a equipe da Gávea faturou três Brasileiros, quatro Cariocas, uma
Libertadores e um Mundial.
Além do título, o antológico gol deu
fim a um histórico jejum do Flamengo. Em 1978, o clube amargava cinco
jogos sem marcar sobre o Vasco, a maior sequência rubro-negra sem gols
no Clássico dos Milhões até os dias de hoje. Do dia 24 de abril de 1977
até o 3 de dezembro de 1978, foram quatro empates por 0 a 0 e uma
vitória do Cruz-maltino por 3 a 0.
- Realmente foi um divisor de
águas. Vínhamos de fases adversas, de nenhuma conquista de campeonato.
Vejo (essa atribuição) de uma forma positiva em relação à liderança do
nosso maior ídolo, Zico. Isso sempre contribuiu para que os jogadores
chegassem ao clube e se espelhassem nessa geração enquanto
profissionais. Foram grandes conquistas, o ambiente de trabalho,
amizade, confiança, respeito, amor. Gratidão desde o presidente até o
funcionário mais humilde do clube, que nos ensinaram a ter amor por esta
sigla CRF - declarou o ex-camisa 3 da Gávea.
A conquista do
Carioca ainda teve um gostinho especial para Rondinelli: além da
'redenção' rubro-negra com o fim da seca, o título marcou o triunfo da
Gávea sobre uma equipe que era 'muito melhor que a nossa', na opinião do
zagueiro. O plantel da Colina tinha nomes como Leão, Abel, Gaúcho e o
ídolo Roberto Dinamite.
O registro do lance: Rondinelli subiu e cabeceou nas costas de Abel Braga (Foto: Reprodução)
História de Rondinelli no Flamengo começa anos antes do famoso título
Muito
antes da glória estadual, Antônio José Rondinelli Tobias desembarcou no
Rio de Janeiro em 1968 com um 'empurrãozinho' de Velau. Por
coincidências da vida, o ex-atacante do Rubro-Negro na década de 1940
montou uma oficina na cidade natal do Deus da Raça, e disse ao zagueiro
que ele poderia fazer testes no clube da Gávea (Velau já tinha indicado o
meia Zanata ao Flamengo).
- Cheguei à categoria de base em 1968
para fazer meu primeiro teste. Por circunstâncias da vida, ele residia
em São José do Rio Pardo, minha terra natal e de meus familiares. Não é
que eu não tivesse tido apoio, mas é que eu era uma criança sem
experiência numa cidade grande como o Rio de Janeiro. Houve uma grande
contestação do meu saudoso pai Dário. Por outro lado, houve grande apoio
da minha mãe Sylvia. O grande incentivador foi mesmo meu avô Sylvio
Rondinelli - completou.
O avô nasceu na Itália e era um
apaixonado pelo Palestra, atual Palmeiras. O avô levava o jovem Antonio
aos estádios de futebol sempre que possível. No hall de ídolos, o
patriarca da família tinha Oberdan, Djalma Santos, Tupãzinho, Servílio e
Ademir da Guia como estrelas principais.
Além de Sylvio, Antonio
tinha o tio Vicente Rondinelli como figura dentro do meio do futebol.
Vicentino, como era conhecido, começou a carreira no Fluminense e chegou
a jogar no Flamengo ao lado de Fernandinho, primeiro goleiro
profissional da história do Rubro-Negro.
Promovido ao grupo
profissional em 1974, Rondinelli morou sob o mesmo teto que Cantarele em
um pequeno apartamento alugado no bairro do Flamengo, uma experiência
que marcou 'momentos de libertação e o começo da independência' da dupla
no Rio de Janeiro.
Rondinelli é ídolo do Flamengo até os dias de hoje (Foto: Reprodução)
- Me lembro principalmente
entre os anos de 1972 e 1974, quando comecei a assumir a vaga de
titular no Flamengo. Devido às conquistas do bicampeonato no juvenil,
despontei e me sobressaí em jogadas, despertando olhares do técnico do
time principal, Fleitas Solich, além de outros treinadores. Foi muito
gratificante e prazeroso conviver com Cantarele, um baita amigo e
conselheiro. Uma experiência muito valiosa para o que somos hoje -
disse.
Com a vaga na zaga garantida e os desempenhos de destaque,
Rondinelli foi convocado para a Seleção Brasileira durante a preparação
para a Copa do Mundo de 1978. Entretanto, uma lesão após seu retorno ao
Flamengo quebrou a sequência titular no clube da Gávea - e ele quase
foi parar no Internacional em troca de um atacante. O ex-camisa 3 contou
suas motivações para reconquistar a posição no time de Claudio
Coutinho, 'o grande nome' dentre os treinadores com quem trabalhou.
Postura em campo e a alcunha de "Deus da Raça"
É
fácil entender de onde vem o apelido carinhoso: não faltam episódios em
que o ex-camisa 3 parou as jogadas adversárias na base da garra. Na
final do Campeonato Brasileiro de 1980 - o primeiro dos seis triunfos do
Flamengo - , Rondinelli ficou de fora do duelo de volta contra o
Atlético-MG. O motivo? Ele quebrou o maxilar no que muitos acreditam que
foi uma dividida com Éder; o "Deus da Raça" revelou ao L! que, na verdade, a jogada em questão envolveu o atacante Palhinha.
-
Ele me deu uma cotovelada na região do maxilar, onde tive uma fratura.
Por consequência, (fiz) uma cirurgia delicada que acabou tirando a minha
audição total do ouvido esquerdo. Minha esposa escreveu um bilhete,
dizendo que eu estava passando bem e que os atletas jogassem por mim,
mesmo eu estando hospitalizado - acrescentou Rondinelli.
O
ex-jogador não nega que a raça dentro de campo foi um dos artifícios que
ele encontrou para compensar pela baixa estatura. O zagueiro tem 1,76m,
altura considerada abaixo da média para os atletas da posição.
Rondinelli recebeu o apelido carinhoso de 'Deus da Raça' da torcida rubro-negra (Foto: Reprodução)
- Eu era um jogador
voluntarioso e com muito afinco. Não gostava de perder nem em treinos.
Assim, consegui conquistar a torcida, com minha raça e coragem "suicida"
para evitar qualquer gol dos adversários. Dessa forma eu compensei
minha baixa estatura e minha técnica limitada - afirmou.
Em outro
lance marcante, Rondinelli se viu em uma disputa de bola com Rivellino
durante um Fla-Flu amistoso. Para afastar o perigo, a reflexão do
zagueiro foi rápida: por que não tirar a bola do pé do meia com a
cabeça? O lance gerou preocupação até mesmo no rival, que deu uma bronca
no rubro-negro após a conclusão da jogada.
- Ele virou e falou
exatamente “você ficou louco, garoto? Você quer que eu te arranque a
cabeça?" (risos). Jamais me passou pela cabeça que me exceder em raça,
vontade e determinação fosse prejudicar a minha carreira como atleta
profissional. Nenhuma lesão ou contusão me assustou - relembra.
Saída do Flamengo e a ausência nos troféus de 1981Se
por um lado Rondinelli 'abriu as portas' para as conquistas de geração
1978-1983, por outro ele não participou das duas maiores delas: a
Libertadores e o Mundial. Em 1981, o zagueiro deixou o Flamengo após ser
negociado com o Corinthians. De acordo com o camisa 3, a principal
motivação para sua saída foi um maior interesse da Gávea em apostar em
novas fichas da base.
- Não me arrependo de ter sido negociado
com o Corinthians. São situações que ocorrem de interesse com os clubes.
No momento, foi o melhor para mim e para ambas as equipes. À época,
havia o interesse (no Flamengo) em jogadores mais novos que vinham se
destacando, com condições de escrever suas histórias, feitos na base,
como eu. São os casos do Figueiredo e do Mozer, por exemplo - lembrou.
A
distância do grupo campeão em nada diminuiu o sentimento do zagueiro de
fazer parte do caneco - e o clube também fez questão de reconhecer a
importância de Rondinelli. Prova disso é que o Flamengo enviou duas
faixas de campeão (tanto da Libertadores quanto do Mudial) ao camisa 3,
que estão guardadas com carinho até os dias de hoje (veja na foto
abaixo).
Rondinelli e a faixa de campeão da Libertadores (Foto: LANCE!)